Heraldo Laranjo: “A nova unidade do Hospital São Judas Tadeu será responsável por uma certa revolução em nosso processo de entendimento sobre a questão do tombamento do centro histórico de Oliveira.”
Patrimônio histórico se alia ao desenvolvimento sustentável
Dez anos após o ato de tombamento, em nível estadual, do Centro Histórico de Oliveira, a dinâmica de proteção desse conjunto arquitetônico entra em nova e virtuosa fase, com o desenvolvimento de um vigoroso projeto de educação patrimonial e construção de uma torre de 14 andares para o Hospital São Judas Tadeu, mostrando que a preservação não colide com a evolução urbana, com a qual pode e deve convier harmoniosamente. Para falar sobre esse momento revolucionário e de grande importância para a sociedade oliveirense, entrevistamos o arquiteto urbanista e restaurador Heraldo Laranjo, há 38 anos atuando nesse campo da preservação.
Gazeta – Após a fase de contestações, questionamentos e tentativas de mudanças, podemos dizer que o tombamento estadual do Centro Histórico de Oliveira está definitivamente consolidado?
Heraldo - Eu penso que sim. Não há mais como haver dúvidas sobre a validade e legitimidade desse tombamento por parte dos maiores contestadores desse ato legal que, na verdade, deve ser considerado como um título de honra, um reconhecimento do valor do nosso patrimônio cultural pelo governo de Minas. O tombamento é também um instrumento de planejamento urbano presente nas administrações públicas das mais desenvolvidas cidades inclusive. Além do mais, pode-se ver, passados dez anos do tombamento, uma consciência sendo formada entre os proprietários que investiram em seus imóveis, refletindo nas fachadas as boas obras de restauração. Isso produz efeitos benéficos na melhoria do ambiente urbano e em outros planos sensoriais de cada indivíduo, que pode viver numa cidade mais bonita e humanizada.
Gazeta – Como deve ser compreendido o tombamento por parte das administrações municipais e se converter em incremento à evolução da sociedade, ao desenvolvimento responsável da cidade?
Heraldo - O tombamento deve ser entendido também como um processo em construção. O ato administrativo, decreto ou lei que determinam um tombamento não é um fim em si mesmo. O ideal é seguir evoluindo nas melhorias do centro histórico tombado, tendo a comunidade conhecimento sobre as diretrizes que apontam para dotar esse núcleo de maior dinamismo em termos de propostas revitalizadoras, projetos de valorização da paisagem urbana, dos espaços públicos das ruas e praças, da requalificação de fachadas, do equilíbrio estético e controle de combate à poluição visual de placas e letreiros, investindo-se em ações para dar ao habitante o protagonismo e não aos automóveis, por exemplo. Esforços concentrados então na criação de espaço humanizado e que seja o retrato da identidade cultural daquela comunidade.
Gazeta - O que o moveu a se dedicar às ações que tem empreendido em favor da educação patrimonial?
Heraldo - Logo que me formei em 1985, passei a me dedicar a essa causa da preservação do patrimônio, trabalhando inicialmente pela restauração da igreja matriz. Em 1987, consegui apoio do então secretário de Estado da Cultura, Jota Dângelo e foi publicado meu primeiro livro Memória Arquitetônica de Oliveira. Tal estudo serviu como reflexão diante do processo de perda daquela identidade arquitetônica e urbanística. Passadas essas quase quatro décadas, vivemos, sem dúvida, um período da história mais do que desafiador ao convivermos com uma sociedade materialista, na qual se nota o consumismo desenfreado e outros distúrbios que refletem no desinteresse de muitos jovens pelas origens de sua cidade, por exemplo. Corre-se o risco dessa sociedade não cultivar o chamado senso de pertencimento, o orgulho de pertencer a um grupo social e que contribui para a construção da cidadania. Como Oliveira sofreu com sérias campanhas negativas por parte de empresários, especuladores imobiliários e políticos contra o tombamento do seu centro histórico pelo IEPHA, que neste ano completa 10 anos, tive a iniciativa de tirar dos meus arquivos um projeto que idealizei em 2007 e passei a dar vida àqueles croquis, criando enfim, os personagens de histórias em quadrinhos a partir da necessidade de transmitir às atuais e futuras gerações o real sentido e valor da preservação do patrimônio cultural. Crianças e jovens recebendo impressões nocivas e negativas sobre esse fato me incomodam, deve nos preocupar. O tombamento ou o patrimônio histórico arquitetônico sendo tratados como empecilho ao desenvolvimento da cidade, sendo culpados pelo desemprego, fuga de capital e outras falácias foi o que se ouviu nesses anos todos. Ações foram impetradas por aquele grupo contrário ao tombamento, em todas as instâncias da Justiça, sem sucesso, mas a imagem que construíram contra o patrimônio, desconsiderando as questões técnicas, fazendo-se acreditar que foi um grande erro esse ato do governo de Minas ou do IEPHA em especial, continuou a ser difundida ao longo desse período. A partir dessa necessidade de se criar uma forma de tornar claro o sentido dessa preservação, corrigir distorções criadas, desmistificar conceitos ultrapassados sobre o que significa uma cidade ser histórica e envolver crianças e jovens, mas por extensão, toda a comunidade, em torno de valores e conceitos que dizem respeito ao reconhecimento desse patrimônio, procurei, por um tempo, uma forma de alfabetizar culturalmente minha comunidade, de maneira a envolver a todos, a partir da infância, influenciando toda a sociedade.
Gazeta – O seu projeto é composto por um livro introdutório às histórias em quadrinhos que devem seguir várias edições. Isso é parte, também, de um programa que agrega mais integrantes?
Heraldo - Sim. Em junho deste ano foi lançado um projeto inovador chamado Educação Patrimonial e Cidadania, capitaneado por Amanda Vargas e Thonnynho Barcelos, do qual sou integrante, tendo lançado o livro “Mistério e Fantasia no Universo Barroco da Paixão e da Folia” e o gibi “Turma do Zeca Cainaguinha”. Associei a figura do encapuzado ao Barroco, baseado em pesquisa preliminar assinada pelo escritor e poeta oliveirense, autor do prefácio desse livro, Márcio Almeida, que assim o classificou. Essa pesquisa lítero-visual traz, em seu bojo, uma correlação de patrimônio imaterial com o patrimônio material em seus dois primeiros capítulos, tornando interativa a relação do cenário urbano com seus casarões e igrejas com tais personagens, aprofundando-se nas buscas pela origem dos encapuzados ligados ao sagrado. Nesse livro, eu sinto que transborda, escorre além de suas páginas, pelas imagens e textos, o sentido de patrimônio como uma causa humanitária, pois há ali a promoção humana ao destacar artistas e suas obras. Estão ali estampadas as faces dos heróis da resistência, que permanecem garantindo uma tradição em crescente desinteresse por parte das novas gerações.
Gazeta – E quanto às revistas em quadrinhos Turma do Zeca Cainaguinha?
Heraldo - Os gibis que criei na atualidade se baseiam numa proposta pedagógica já reconhecida como eficaz na Educação. As histórias em quadrinhos são ferramentas poderosas na transmissão de mensagens e estímulos ao conhecimento e à prática da leitura. Criei personagens a partir de figuras típicas e exclusivas do carnaval de Oliveira – os cai-n’águas e gatinhas, que experimentam um certo esvaziamento da tradição a cada ano. O tema patrimônio cultural e sua defesa está entre outros temas, todos eles responsáveis pela formação de uma sociedade civilizada, próspera e cidadã. Alguns personagens que defendem essas causas da sociedade contemporânea, não só o patrimônio histórico, fazem parte de uma turma criada por crianças que se juntam, em nome da aventura do conhecimento, incluindo um casal de cientistas, inspiração por ser Oliveira terra de um dos maiores cientistas do século XX, Carlos Chagas.
Gazeta - Como está sendo recebido o projeto nas escolas e em que consiste o programa proposto?
Heraldo - Experimentei, por enquanto, a interação com o curso de Pedagogia da FEOL e demais professores, pedagogos, supervisores da rede de ensino municipal, estadual e particular, tendo recebido também o apoio da secretária Andrea Pereira. Vejo que há receptividade por parte de todos os convidados a se envolverem com esse projeto que atende a vários itens presentes nos programas oficiais do ensino, destinados a estudantes de diversos graus de instrução e faixas etárias. Ao se integrarem ao processo de criação, jovens e crianças serão estimulados a participarem de novas edições, promovendo a criatividade na condução dos enredos, sugerindo novos personagens, contribuindo para a disponibilização de ricos conteúdos e formação de material pedagógico ligado aos valores locais, uma lacuna observada e sentida pelos educadores. Oficinas de histórias em quadrinhos e gibitecas serão estimuladas. Será promovido assim o chamado “círculo virtuoso”.
Gazeta – O Hospital São Judas Tadeu planeja a construção de um prédio de 14 andares que, entretanto, encontrou alguma resistência de liberação, por parte do IEPHA, visto se encontrar no limite da área de tombamento. Há avanços nessas conversações?
Heraldo - A nova unidade do Hospital São Judas Tadeu, em fase de projeto, será responsável por uma certa revolução em nosso processo de entendimento sobre a questão do tombamento do centro histórico de Oliveira. A referida torre de 14 andares, projetada pelo arquiteto Pedro Paulo Cardoso com toda a técnica que soluciona de forma admirável toda a complexidade de uma unidade hospitalar como essa, estaria, entretanto, muito além dos parâmetros construtivos definidos para a área do centro histórico. Em entendimento entre técnicos e presidência do IEPHA, o Ministério Público e a administração do hospital, chegando-se ao consenso sobre a importância desse projeto tão necessário à ampliação dos serviços e especialidades na área da Saúde, pode-se vislumbrar uma proposta que une os interesses legítimos da comunidade, a uma bem pensada contrapartida por essa obra contar, para sua viabilização, com terreno situado na margem da área delimitada pelo tombamento. Foi proposta uma ação compensatória, que contemplará a divulgação de nossa cultura e valorização do centro histórico, por meio de recursos inseridos naquele projeto, como um mirante integrado a um restaurante na cobertura, proporcionando um enfoque à contemplação da área tombada. A fachada do referido prédio terá elementos mais condizentes com a cultura ou identidade local. Seu interior terá exposição temática como elemento de fruição de nossos valores históricos, por meio de uma linguagem visual contemporânea, segundo iconografia criada como marca identitária desse centro de saúde envolvendo a cultura, história e ciência da terra de Carlos Chagas. O projeto terá, em sua ala infantil, a presença, como elemento iconográfico decorativo, dos personagens dos quadrinhos da Turma do Zeca Cainaguinha em seu universo de experiências que homenageiam e difundem a Ciência. Em consonância com o pensamento do administrador do hospital, Ramon Gonçalves, adepto à ideia de que a saúde também tem a ver com a interação do ser humano com a arte, a cultura, a memória histórica de seu grupo social, pretende-se dotar os espaços da nova unidade hospitalar dessa visão humanista, ao mesmo tempo em que divulgamos nossa cultura como um atrativo atenuante aos momentos de espera vividos por acompanhantes e pacientes em seus tratamentos que exigem mais tempo nesses espaços. Esse momento de diálogo e interação em prol do bem comum é histórico e se concretiza por conta desse projeto de valor social incomensurável e que une grupos da sociedade que pareciam antagônicos aos olhos de quem ainda não compreende que todos nós queremos o melhor para nossa cidade. De forma plenamente justificável para a flexibilização de normas técnicas e legais, estamos encontrando soluções que nos motiva a seguir nesse diálogo produtivo e compensatório, por anos de incompreensões e perdas de oportunidades que queremos fazer acontecer conforme a consciência de que preservação do patrimônio não é antagônica ao desenvolvimento, mas uma ferramenta para o crescimento responsável e bem fundamentado em nossa cultura e identidade, o que favorece a definição da imagem do oliveirense de forma mais positiva perante o mundo.
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