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Entrevista especial: As origens e a evolução do Cai-n’água


Márcio Almeida (esquerda) ao lado de Hidemburgo Salgado, durante reunião dos Cai-n’águas em 12 de janeiro de 2007 - Foto – Sérgio Henrique Dinis / Acervo GM

Criador da Comissão Pró Cai-N´água Centenário, iniciativa que evitou a extinção da fantasia, o escritor e jornalista Márcio Almeida, hoje presidente de honra da entidade, tem muito o que contar e ensinar sobre esse peculiar personagem, símbolo maior do Carnaval de Oliveira e pelo qual ele luta há pelo menos cinco décadas. E é isto o que ele faz nesta entrevista concedida à GM.


Gazeta - O que é o cai-n’água?

Márcio Almeida - O cai-n’água é uma alegoria do carnaval que faz parte do entrudo de Oliveira desde pelo menos 9 de fevereiro de 1890, quando esta GAZETA DE MINAS publicou o primeiro registro sobre o fato de que rapazes mascarados festejavam o folguedo de Momo. Em Oliveira, no início, era costume antigo aqui na terra grupos de moços procurar casa onde havia moças e, uma vez dentro da casa, tratar de arranjar água para ensopar as pessoas - daí o nome cai-n’água. Muito remotamente, o nome cai-n’água era associado ao hábito de no carnaval o mascarado ser jogado dentro de poços ou cochos cheios de água. Em nível político, o cai-n’água aproveitava do seu anonimato e visitava casas de adversários, quando soltava a língua sobre eles. José Demétrio Coelho registra em seu livro "Recordações de Oliveira" que "o entrudo dava gosto e sensação, com uma batalha entre combatentes de ambos os sexos, que, com limões em punho (uma espécie de bisnaga) e no aceso da luta, corriam pelas ruas num alarido louco. "Esse historiador registra também que uma vez proibido o entrudo pelo delegado Pinto Machado, coube a Francisco Coelho de Moura (dr. Chiquinho) vingar-se do esgar do carro alegórico intitulado "Enorme Rato", que criticava o rapto do diploma de senador a ele conferido, mantendo das janelas do seu sobrado na rua Direita o entrudo com banho d’água nos incautos transeuntes.


Gazeta - Quais são suas origens, quando e por que se manifestou especificamente em Oliveira?

Márcio Almeida - O cai-n’água é a expressão carnavalesca secular que reúne um pouco de cada tradição desde o sentido anunciado da figura do farricoco nas procissões do Triunfo Eucarístico, em Ouro Preto, 1733, e do Áureo Trono Episcopal, em 1748, quando da posse de dom Frei Manoel da Cruz como bispo de Mariana. Nestes eventos, os arautos mascarados marcavam presença com diferentes trajes, com jocosidade nos gestos, os quais em graciosos bandos e recitação de poemas se espalhavam em meio ao povo, avisando sobre as festividades religiosas. Segundo o professor Múcio Lo-Buono, a origem do cai-n’água poderia advir do encapuzado das procissões de Sevilha, que mantêm até hoje a mais genuína representação da Semana Santa europeia. A importância do relato do professor tem procedência. Instituída por Urbano IV para honrar a presença real de Cristo na Eucaristia, quando a procissão de Corpus Christi era a mais pomposa de Portugal, de onde data do século XIII com o máximo esplendor de tropas, fidalgos, cavaleiros, andores, danças e cantos. No Brasil, carta de 4 de agosto de 1549, do padre Manuel da Nóbrega, informava que "outra procissão se fez de Corpus Christi solene [quando] houve danças e invenções, à maneira de Portugal. A primeira caracterização do cai-n’água advém do farricoco religioso envergando uma túnica escura, com capuz sobre a cabeça e máscara para os olhos e a boca, simbolizando os Novíssimos do Homem, tocando uma trombeta, sustentando na mão esquerda uma comprida e fina vela de cera. Com este personagem bizarro começavam a passar os Terceiros da Confraria com seus hábitos próprios, empunhando grossas e pesadas tochas e cada qual com um instrumento da Paixão. Na cidade de Goiás Velho (GO) ainda hoje, mas desde 1745, existe a Procissão do Fogareu com representação da prisão de Cristo feita por 40 farricocos encapuzados, que caminham pelas ruelas da cidade às escuras seguidos de milhares de pessoas que carregam tochas, ao som de tambores e músicas barrocas.


Gazeta - Podemos afirmar, então, que a gênese principal do cai-n’água é religiosa?

Márcio Almeida - A figura do cai-n’água provém de influências religiosas adaptadas no Brasil através de figuras semelhantes. É o caso do farricoco, de modo especial em Goiás Velho (GO), do clóvis, no Rio de Janeiro, do papangu, nos sertões do país, estes que iam a público enrolados em sacos de estopa, caras escondidas em fronhas, mãos calçadas de meias e máscaras de papier maché representando expressões caricatas. O papangu vem desde a época do Ventre Livre. Também esses mascarados saiam à frente das procissões de penitência, registra em verbete o historiador e folclorista Câmara Cascudo. Em 1831, a Câmara Municipal do Recife proibiu a participação do papangu nas procissões, quando passaram a desfilar só no carnaval pernambucano. Atualmente com meias nas mãos, máscaras rústicas e confeccionadas com papel jornal e goma à semelhança dos cai-n’águas. Os carnavalescos chamam sua fantasia de "cafta" - batas longas, estampadas com cores luminosas e máscaras sofisticadas, inclusive com o apoio das prefeituras. A razão de o cai-n’água ter se caracterizado em Oliveira deve-se ao fato de oliveirenses que iam ao Rio de Janeiro trazerem de lá as novidades carnavalescas, muitas ou quase todas referentes ao Clóvis, colhidas no bairro de Santa Isabel. Diz o escritor José Nava que em 1865 as lojas do Rio de Janeiro vendiam ou alugavam dominós, titis, chicards, folichons etc, como também saco de talagarça, bisnagas e limões de cheiro, cabacinhas de cera, cartuchos de farinha de goma... Estudantes ou turistas oliveirenses quando vinham a Oliveira traziam as "atrações" momescas em primeira mão, entre outras a novidade do "clóvis."


Gazeta - Quais as diferenças entre o cai-nágua oliveirense e o farricoco?

Márcio Almeida - O farricoco tem um uma procedência religiosa, caracterizando-se como arauto de procissões e de tradições da Igreja. É por isso um elemento oriundo do sagrado. O farricoco, em algumas cidades, ainda é utilizado como arauto religioso. O cai-n’água evoluiu desse ícone para o profano, com semelhanças indumentárias.


Gazeta - O que significa a tradicional vara que os mascarados trazem às mãos?

Márcio Almeida - Por décadas, para alguém se vestir de cai-n’água era preciso pagar uma taxa de uma autorização especial denominada "ordem", cada uma com um número registrado na delegacia. Isso porque a "ordem" dava o direito de o cai-n’água não ser identificado por ninguém durante todo o carnaval; de poder usar vara de marmelo contra as pessoas; além de permitir ao detentor, ficar mascarado até as 22h, isso até mais ou menos o ano de 1980. Alguns policiais eram rigorosos, como Piquitito, Sebastião Cesário, José Geraldo, Jair e Geraldo Magela, entre outros. Se o cai-n’água estivesse sem a identificação, sua indumentária era retirada e o carnavalesco podia até ser levado à delegacia. Em 1986 o então prefeito Paulo Resende, com muita lucidez, acabou com a cobrança e a "ordem" foi definitivamente suspensa.


Gazeta - Quais foram os motivos da criação do Movimento Pró Cai-n’água Centenário?

Márcio Almeida - Promover a preservação da maior tradição do carnaval de Oliveira, que vem desde o bloco Treze de Ouro nas ruas e salões, sob a liderança do meu irmão Laércio Sardinha.


Gazeta - Além desse movimento, são vistas iniciativas em favor da preservação da cultura do cai-n’água em Oliveira?

Márcio Almeida - Tem-se visto uma preocupação maior com o registro e a preservação do cai-n’água, enquanto patrimônio cultural de Oliveira. Em 1992, mediante projeto de Heraldo Laranjo, o cai-n’água foi tema da decoração do carnaval de rua, oferecendo mais visibilidade ao olhar dos turistas e valorizando a tradição oliveirense. João Belo, fotógrafo e líder de audiência em programa da ex- Rádio Sociedade, teve a iniciativa de, em 2005, criar o site do cai-n’água, contendo síntese histórica do folião mascarado, fotos e informações atualizadas sobre a atuação da Comissão. Paulista, mas radicado em Oliveira, o falecido fotógrafo Ernesto Veloso tinha um click mágico para registrar o folião encapuzado, captando a alma de uma imagem, tornando-a uma obra de arte. Com rara sensibilidade e apuro técnico, Ernesto Veloso marcou época no registro das fases de transformação de uma Oliveira provinciana aos alvores da modernização. Em 2001, por solicitação da empresa editorial, eu produzi um verbete sobre o cai-n’água para a enciclopédia Barsa, inclusive na versão em CD, que era “top” na época. O jornal "Comércio & Cultura", registrou: "O cai-n´água agora é cidadão do mundo em pleno anonimato de sua identidade." Em 1994, o cai-n´água teve inaugurado pelo prefeito Nem do Beijo um busto na Praça XV, destruído logo em seguida a mando "oficial" de políticos.


Gazeta - Dentro deste contexto, observa-se que a fantasia vem passando por alterações, especialmente em suas manifestações pré-carnavalescas que ocorrem nos bairros, nas semanas que antecedem o carnaval. Há casos de abolição do dominó, do cone e da máscara de pano e uso de grandes varas de bambu. Como você vê essas mudanças?

Márcio Almeida - Vejo as mudanças com muita tristeza, uma vez que essas espelham a necessidade premente de haver uma pedagogia do cai-n’água, por meio de órgãos públicos e da Comissão Pró Cai-N’Água Centenário. O dominó, a máscara, o capuz o tênis, devem ser preservados. Para tanto é preciso lembrar que, ao abrir o carnaval na quinta-feira, dia 16, uma comissão de olheiros e fiscais previamente revestidos nessas funções, estará atenta para distinguir, com troféus produzidos pelo artesão Tiel Lobato, o cai-n’água mais original, o mais antigo, o bloco melhor caracterizado, a máscara mais feia, o cai-n’aguinha mais novo...


Gazeta - O cai-n’água é patrimônio histórico de Oliveira. O que fazer para a cidade continuar preservando essa autêntica manifestação folclórica?

Márcio Almeida - Manter ações sustentáveis e imprescindíveis entre comunidades, escolas e Secretaria Municipal de Cultura, Lazer e Turismo; trabalhar junto a empresas e órgãos públicos no sentido de se conseguir mais dominós para empréstimo e doação aos foliões; manter um calendário de atividades junto às escolas; oferecer oficinas para aprendizado da produção de troféus e máscaras; programar palestras em escolas e locais públicos sobre a importância cultural do cai-n´água; trabalhar no sentido da obtenção de instrumentos musicais para dotar a Comissão de autonomia cada vez que desfilar; programar visitação pública à sede da Comissão; reedição do livro "Cai-n’água: a maior tradição do carnaval de Oliveira", esgotado desde 2007; promover concursos com prêmios de pintura, desenho, crônica, poesia, escultura, entre outras artes, tendo por tema o cai-n’água.

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