João Bosco Ribeiro
Valdir Bernardino: exemplo de vida que supera limites.
Entrevista especial
O que é preciso para se viver plenamente? Berço de ouro? Formação acadêmica? Doutorado? Estética física? Com a imensurável opulência do talento e sensibilidade humana, Valdir Bernardino do Nascimento tem muito o que ensinar às novas gerações, sobre os verdadeiros valores humanos, obtidos com o uso de ferramentas eficazes e ao alcance da mão, como música, teatro, cinema, literatura, comunicação e fé. Negro, pobre e despontando numa época em que só havia espaço para “brancos de família”, ele ostenta um currículo brilhante em favor da cultura de Oliveira. É ele que fala à GM sobre esse nobre legado.
Gazeta - Você vem de uma família de músicos. Conte-nos um pouco sobre isso.
Valdir - Sim. Meu pai, José Bernardino do Nascimento, era um músico de talento. Tocava clarineta e piston, mas encarava com êxito outros instrumentos. Ele veio para Oliveira por volta de 1910 para trabalhar como pedreiro. Trouxe com ele o talento e a experiência na Lira de São Francisco de Paula. Aqui conheceu Maria Antônia – Lilia – com quem se casou e teve filhos, hoje restando eu e minha irmã caçula Vanilda Bernardino. Aqui ele fundou a sua banda de música e tocava tanto em igrejas como em carnavais, lupanários às vezes. Na prole tinham meus irmãos que tocavam violão e cantavam. Enquanto a Lourdes acompanhava tudo e sabia como lidar com isso pela rádio, a Elza Bernardino ajudava no Coro do Múcio Lo-Buono, nos Passos. Foi também Verônica por 2 ou 3 anos. Eu, dos mais novos na época, fui além, em conjunto e coral, festival, rádio. Na nossa casa, enquanto nossa mãe fazia o café e assava a broa no forninho do fogão, meu pai pegava a clarineta, a Lourdes o violão, a Alice no bate-banjo de um velho cavaquinho e os demais cantavam. Era uma festa de que tenho saudades. Fomos família pobre, lutadora, mas feliz.
Gazeta – E como foi sua formação educacional?
Valdir - Estudei na Escola Estadual Desembargador Continentino por 5 anos. Repeti a 1ª série. Por causa da nossa situação social, a alimentação não era a recomendável para ter-se saúde física, bom aprendizado, desenvolvimento geral. Não tinha a inteligência desenvolvida como os outros meninos. No entanto, nas reuniões festivas, nos auditórios, eu estava sempre participando com canto, recitação de poesias, textos. Lembro bem de uma visita do bispo dom José Medeiros Leite à turma da tarde. Cantei para ele, com o piano executado por dona Maria Iris Teixeira Silveira, a música: “quando há seca no sertão, muda toda a natureza, não se houve uma canção, tudo ali é só tristeza”. Fui abraçado por ele. Minha formatura no grupo aconteceu em 15 de novembro de 1956. No dia 18, segunda-feira, às 12h30, cheguei às oficinas da então Gazeta de Minas, para aprender o ofício de tipógrafo, onde permaneci até 1994, quando fui despedido da Santa Cruz Publicidade, que na época era a editora da Gazeta. Comecei a desenvolver inteligência e capacidade sob a orientação de monsenhor Leão Medeiros Leite, para quem eu levava as provas de páginas para revisão. Pela orientação do monsenhor comecei a ler livros e revistas. Não posso deixar de assinalar a ajuda e orientação de dona Célia Ferreira Rosa. Não posso esquecer e ainda está viva na minha mente: “Delma, me empresta um pouquinho do Valdir? – Pode sim. Pode ir, respondeu dona Delmira Rodrigues. Saindo apressada seguido por mim, escutei-a dizer: “Hoje você sai daqui sabendo ler. Seja a hora que for! Não foi preciso retardar tanto. A sineta tocou e saí lendo. A didática de dona Célia Rosa foi a mais eficiente que tive. Sou-lhe grato até hoje quando pego algo para ler.
Gazeta - Quando e como você começou a se interessar pelas artes?
Valdir - Na escola, em casa. Devo vivência à Gazeta, o contato com o pessoal que comentava filmes, fatos, artistas. Tudo isso foi abrindo minha curiosidade. Falavam de Jannifer, Jones, Marlon Branco, artistas brasileiros, e fui ficando curioso também. Sempre cantei, ia muito ao cinema. A primeira década na Gazeta foi como que fundamental para o depois.
Gazeta - Você venceu um festival de música de Oliveira, com a canção “Rosa Flor”. Como foi isso?
Valdir - Foi muito interessante. O João Bosco Pires, filho do João do Bar, era presidente da União dos Estudantes Católicos de Oliveira. Era ele, o Zé Curi, a Maria Curi e outros. Tomaram a iniciativa de fazer um festival de música, com autores de Oliveira e de outras cidades. A ideia proliferou. Vários autores estavam compondo. Eu quis arriscar. Nunca tinha escrito nada. Nessa época eu era impressor manual na máquina Bremensis, na Gráfica Santa Cruz. Papel disponível, caneta também. Quando surgia uma frase bonita, a escrevia, até a letra ficar pronta. Encontrei o padre Nereu, também empolgado com o evento. Passei-lhe a letra e ele musicou-a. “Há canção vagando no tempo, há poeta distante, a sonhar, uma rosa morena passando...eu olhando esta rosa passar...” A Rita de Cássia Agostinho intgerpretou a canção no 1º Festival de Música de Oliveira – FOC. Foi uma competição acirrada com Basquá, Grupo Algazarra, gente de São João del Rey, Varginha, Belo Horizonte. Foi um sucesso. No dia da apresentação final eu estava na bateria do conjunto “Os Bárbaros”. A comissão julgadora subiu ao palco, no Cine Pax, para declarar o resultado. Ao passar por mim, o Lincoln Mendes falou com sutileza: “Você venceu o festival. A Rosa Flor ganhou”. O cinema lotado e agitado. Assovios, gritos, vibrações. Fui receber o troféu. Isso há 58 anos. Tenho a fita gravada, guardada até hoje.
Gazeta - Você foi um dos idealizadores do Grupo Teatro Abertura, que este ano está completando 50 anos. Como tudo começou?
Valdir - Na verdade eu não tinha muita familiaridade com o teatro. Tive a primeira experiência com Azuil Laranjo, numa promoção ainda da UEC, montando a peça “O Macaco da Vizinha”, de Joaquim Manoel de Macedo. Formando elenco com José Curi, Regina Restier, Maria Lúcia Resende, José Maria (o aviador), Danilo Dinardi, JúlioPires, Plínio Pires, Silvério das Neves, dona Sefisa Laranjo Restier e Sebastião Luz. Uma semana de 300 cadeiras ocupadas. Depois veio a segunda oportunidade de interpretar Sebastião, um dos 3 marinheiros patetas da peça “Pluft o fantasminha”. Também fiz o Chicó no Auto da Compadecida e houve ainda outra performance no texto de padre Nereu “Natal de esquina”. Grande elenco em número e qualidade. Fui o congadeiro Preto Veio. Aprendi com isso. E vendo talento e vontade em João Bosco Ribeiro, Tadeu Rocha, Eustáquio e Tales Guglielmelli, Antônio Veloso, Leonardo Rocha, ótimos elementos e sempre ligados a mim, resolvi arriscar a produção da peça “Maria Minhoca”, no Teatro Francisco Fernandes. A experiência foi boa. Deram sequência com “A Bruxinha que era boa”, de Maria Clara Machado, “O Santo e Porca”, etc... Por volta dos anos 1970 fui procurado pela professora Inês Matias, que dava aulas na Escola Margarida Silva Santos, com insistência, para escrever um texto de teatro para ela montar com crianças de São Francisco de Paula. Fiz “Min – A estrelinha que caiu do céu”. Escrevi nas páginas da Gazeta muitas crônicas, registrei a vida de todos os personagens populares de Oliveira, tais como Ita, Norvina, Jaburú, Chico Moca, Antônio Cinco, Sete Bóia, Maria dos “Anão”, Sá Biquinha, entre outros. Em quase 15 meses a dois anos de trabalho, levantava com detalhes a vida de cada um. Foi meu passado nos teclados da máquina de escrever. Também o “Momento Recreativo 04-100” do Tiro de Guerra, apresentado na Sociedade Rádio Oliveira pelos atiradores João Bosco Ribeiro e Tadeu José da Rocha, para tirá-los da faxina do sábado. Na sede, o sargento Odilo Roterdan e os soldados em serviço paravam para ouvir. Escrevia e pesquisava à noite, após o trabalho na gráfica. Ia para a redação e dela saia por volta da meia-noite.
Gazeta - E o Coral Aleluia? O que foi esse grupo?
Valdir - O Coral Aleluia foi outro acidente. Padre Nereu de Castro Teixeira queria fazer um “canto novo” em Oliveira. Convidou jovens e adultos para testes de vozes. Não sei explicar: de repente eu estava lá, ensaiando para Semana Santa de 1968, mais ou menos. No Domingo de Ramos foi só subindo gente para o coro da Matriz Nossa Senhora de Oliveira. No Amém, já pessoas olharam para o coro da igreja. Depois veio a beleza dos textos cantados da Benção dos Ramos: “Com ramos de Oliveira clamavam dizendo: Hosana ó Filho de David em polifonia – 4 vozes. Lindo! Muitas e muitas apresentações. Depois de 10 anos o Nereu resolveu ir para BH e está lá até hoje. E eu aqui, relembro o passado glorioso do Coral Aleluia, suas viagens, ida à televisão em BH. Grupo coeso, sem divergências, regência impecável.
Gazeta - Nas décadas de 1960 e 1970 Oliveira possuía grupos musicais que animavam bailes e outros eventos sociais. E lá estava você cantando em “Os Bárbaros”. Como foi essa experiência?
Valdir - O conjunto Os Bárbaros surgiu no tempo da Jovem Guarda, do Iê-Iê-Iê, dos Beatles, Rolling Stones. Mas a sua função seria abrilhantar as comemorações do Colégio Centenário de Oliveira (hoje Mário Campos e Silva). Seu idealizador foi Raimundo das Neves, com experiência no Jazz Tupã, do José Maria de Oliveira Segundo. O conjunto iniciou com Dinho das Neves, Elmiro Santos, José Maurílio Bispo, Isaias da Luz, Wanderley Lúcio, José Maria dos Santos, Vicente de Paulo Silva (Leitão), Orlando, Vander, José Cury, eu. Depois ganhou dimensões maiores para bailes, shows, TV no programa da TV Itacolomi e do Gaguinho. Fiquei por 7 anos. Trabalhar na gráfica e cantar me exigia muito. Ficava sem descanso semanal, porque chegava do serviço, tomava banho, jantava e depois saia para viajar e tocar em algum lugar. Chegava em casa sempre no amanhecer do domingo com sono e cansado. Resolvi deixar o conjunto.
Gazeta - A literatura é outra arte que você abraçou. A seu ver, qual a importância dos livros.
Valdir - Posso viver de pobreza, mas não posso viver sem meus livros. Leio sempre. Não tenho curso ginasial, mas tenho os livros. Todo mundo deveria ler ao menos uma página por dia. A diversificação literária é muito grande, vasta, para todos os gostos. Pela indicação de monsenhor Leão, o primeiro que li foi Águas Cristalinas, seguido de O Moço Educado, Através de Campinas e Matagais, de Silva Neiva. Sempre a Bíblia Sagrada, obras de autores variados. Quando me agrada, deixo a obra sempre ao alcance da mão. O livro é sempre o melhor presente para receber ou oferecer. Ele é o amigo que ensina, acompanha, conforta, alimenta a nossa fé, crença e a esperança. Faça, sempre, uma boa leitura.
Gazeta - Aos 80 anos, quais os sonhos de vida que você ainda alimenta?
Valdir - Acho que já vivi nesses 80 tudo que podia e devia. Posso dizer que ajudei, senti e participei do bem-estar de muitos. “Combati o bom combate”. Cheguei aonde pude chegar. Não tenho maiores pretensões, nem sonhos de nada, porque no caixão só vão os resultados do bem e do mal que a gente fez em vida. As flores, hipocrisia. As orações, subterfúgios do que não se fez. A fé, chave para se abrir os caminhos da eternidade.
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